domingo, 31 de janeiro de 2016

Quanta terra compro?

Nesta semana houve uma reunião no Incra do Rio Grande do Sul para discutir o parcelamento de Projetos de Assentamento que caminham para a titulação. Como foi um primeiro esforço de qualificação daquilo praticado hoje, não se pode esperar muito avanço, mas só a compreensão de que a legislação agrária está definitivamente conectada com a ambiental e a civil neste momento, já se impôs uma agenda positiva de ajustes. Torço que evolua.

Como sai da reunião pensando em muitas coisas, resolvi aproveitar e postar duas reflexões aqui, uma anterior ao tema do parcelamento, mas que seguidamente ao encontrar alguém com intensão de ter terras me é perguntado:

Quanta terra?


No Permacultura Dois, Bill Mollison dedica um subcapítulo ao assunto de quanta terra basta, no qual afirma ser um erro grave extrapolar as capacidades das pessoas e ter mais terra que se pode lidar, pois é fácil ficar mais pobre na medida em que mais terra se obtenha.


Resultado de imagem para ganância por terra


Pensando em patrimônio e reserva de valor, isso é bobagem? Não! Definitivamente não! O custo da terra está tão alto, que investir além da capacidade de utilização dificilmente vai reverter em algum ganho, deve mesmo virar prejuízo:


  • Quem comprou e arrendou sem exigir cuidados com a conservação do solo, ou proibir o plantio de florestas comerciais, sabe bem o que falo, assim como aqueles que descuidaram e tiveram que enfrentar uma ação judicial para retirar invasores (ocupação de latifúndio, mesmo produtivo, eu apoio!), pior se eles se tornaram posseiros, o que acontece com um ano e um dia de ocupação, então vira um calvário. Pouca gente acredita, mas as desapropriações para reforma agrária são 90% fruto de acordos.

  • Quem desavisadamente deixar em pousio terras no bioma da Mata Atlântica, quando atingir o estágio terciário de regeneração (seis a oito anos) vai ver que a reconversão da área para sistemas de produção tradicionais será praticamente impossível dentro da Lei ambiental.


Enfim, como Mollinson disse, seria ótimo se pudéssemos regular a quantidade de terra pela nossa idade, assim pensaríamos cada vez mais sabiamente. No desafio da resposta de quanta terra, ele é simples: tanta terra quanto se consiga controlar, para atingir antes a autossuficiência, deixando quieta a possibilidade de gerar excedentes. E sugere que se comece pela porta de casa: quem não planta um quintal (jardim, horta, pomar) não inicia um sistema de permacultura.

Deve valer para o Brasil, o que ele afirma se dar na Rússia: nos 4% da área das propriedades camponesas que fica no entorno das casas, é produzido algo perto de 60% da comida, então mil metros quadrados de quintal devem ser o bastante para desenvolver sistemas anuais intensivos e perenes que sustentem pelo menos quatro pessoas.

Na sua visão, o paisagismo "delinquente" do oeste (ele escreve da Austrália) também deve ser repensado em termos de sustentabilidade, pois desperdiçar as áreas suburbanas com gramados, flores e plantas meramente cosméticas, deixando áreas urbanas paradas, enquanto nas fronteiras agrícolas há desmatamento e uso predatório do solo, definitivamente não é algo que possa perdurar mais tempo.

Abordagem interessante que leva à segunda reflexão, sobre os cálculos agronômicos da capacidade de suporte em famílias, de uma determinada área, elaborados ao se criar um projeto de assentamento no Incra.

Há utilidade na dimensão da terra?


É usual que os gestores pressionem os técnicos para colocar o máximo de famílias possível por área, mas pelo motivo errado: os custos. Assim a situação ideal, que fica no no pano de fundo, distorcendo e limitando, permanece protegida de qualquer avaliação: o assentamento deve produzir excedentes comerciais para o mercado, logo cada unidade familiar deve ter tanta terra, quanto seja o necessário para a subsistência e para a produção comercial.

Contraditoriamente, agindo assim, ocorre que as famílias recém assentadas são afastadas da auto-suficiência imediata e necessária, e induzidas a pulverizar sua força de trabalho e recursos em um lote com uma área muito maior do que podem lidar naquele momento, resultando no empobrecimento, dependência do governo, e boa parte da ineficiência desta política pública que perde seus clientes.  

O parcelamento dos assentamentos seria mais proveitoso se seguisse o ensinamento de Mollison e fosse ajustando as quantidades de terra de cada família pelo tempo e experiência, cotejando os momentos iniciais do assentamento com a glória esperada no futuro. Isto implicaria em metas de auto-suficiência prioritárias sobre a produção para o mercado e que uma vida simples fosse um objetivo a curto prazo, deixando de lado a complexa definição de qualidade de vida que se extrai do rol de políticas públicas, dificilmente concretizada em muitos anos. Além disso, áreas pequenas e uso intensivo propiciam não só à infraestrutura, mas aos serviços também, o acesso mais fácil e rápido, impulsionando a produção de alimentos e a segurança alimentar das famílias.

Minifundialização! Já é possível ouvir os gritos.

Nada. Socialmente não parece escusado pensar um assentamentos que não preveja a sucessão familiar, nem a produção para o mercado, então basta importar, da legislação ambiental, a ideia da Reserva Legal, e autorizar a existência da Reserva Produtiva. Uma porção de terras reservada para ser acionada em três ou quatro anos, por cada família individualmente, se assim quisessem, mas que inicialmente servisse como uma fonte de trabalho, aprendizado e renda, onde empreendimentos coletivos e ou arrendamentos legalizados pudessem ocorrer. Mesmo deixada em pousio, só por concentrar a força de trabalho, racionalizar a infraestrutura e o acesso aos serviços, e descansar o solo reconstruindo a fertilidade e estocando recursos naturais, já seria muito mais proveitosa do que o desregramento atual, onde há terra inaproveitada, recursos e créditos perdidos e muito arrendamento individual ilegal e predatório nos assentamentos.

A pressa, então, parece ser inimiga, antes da sobrevivência, e só bem depois, da perfeição, mas os gestores, via de regra, só olham para esta última - as pessoas que se lasquem, importante é a obra. Esta proposta, se posta em prática,  possivelmente diminuiria a quantidade de páginas escritas sobre a evasão das famílias (30% no mínimo) e o rol infindável das justificativas dos fracassos e desvios.

Destarte nunca soube de um Projeto de Assentamento em que não ocorresse disputa entre as famílias candidatas, pela maior quantidade de terra para cada uma. É algo que se espera, dada a natureza humana e as condições desumanas de vida destas pessoas, mas questões culturais são apenas difíceis de alterar, não impossíveis, tal como o erro estúpido e reincidente dos gestores das políticas públicas brasileiras, que insistem em ser julgados (e condenados) pelo (in)sucesso, do que pelos fracassos concretamente evitados. Por este motivo, com sarcasmo, muitas vezes perguntei se era para assentar as famílias na terra ou na Lua?


Foto emprestada do UOL: ISS Missão 36.

Assim demarcava a real importância de se tirar uma família da beira da estrada, de debaixo da lona, na qual viveu por anos, e reconstruir uma cidadania simples, garantidora de um futuro, no qual ela tenha uma casa para voltar, onde comeu e bebeu água hoje, e vai ter o que comer e beber amanhã e no mês que vêm. Na linha do Sen, é dar às pessoas, as condições para que elas valorizem aquilo que encontram razões para valorizar, e não ficar impondo renda disso, produção daquilo, estatísticas e regras burras.

Incrível como pode ser despercebido o quão gigantesco é o passo da invisibilidade para a dignidade que estas famílias dão na Reforma Agrária e como é mais importante para elas atingir um resultado na produção agrícola, não necessariamente monetizável, mas efetivamente capaz de torná-las mais felizes e livres, do que chegar na "lua" da produção dos excedentes econômicos (duvidoso êxito se consideradas junto as dívidas implicadas).

Este debate não evolui, creio, parte pela mesquinhez dos líderes e políticos, mas parte pela cegueira "saramagoana" dos gestores - craques em futebol, acham o máximo o "andar de cima" lhes convidar apenas para o campeonato de tênis coberto pela mídia cativa. Deve ser um vício preferir as justificativas, aos resultados. Gostaria que a Reforma Agrária fosse julgada pelo que é, não pelo que produz, reduzida aos seus resultados ditos úteis.

Quanta fome e sede ela fez cessar, quanta mobilidade e visibilidade ela concedeu às famílias assentadas, quantas crianças ganharam um teto e chegaram na escola. Isso é o que importa, isso muda o Brasil, já o número de contratos de financiamento, ou o valor da produção, ou a quantidade de qualquer coisa (inclusive famílias assentadas e terra destinada) é mera moldura do quadro da miséria rural deste País, nunca deveria passar disso, mas infelizmente basta a sereia cantar um pouco, e os marujos se apressam em aceitar comparações de eficiência, produtividade, VBP, etc. com o agronegócio. Nadam como pregos.

Eis um porquê do roubo de terras e da corrupção dos funcionários e políticos serem facilmente forçados pela mídia como algo muito mais importante do que as inestimáveis pequenas vitórias contra a exploração e alienação das pessoas. Fica parecendo que um indigente ou miserável, quando consegue chegar na pobreza e auferir alguma dignidade, por meio de uma política pública, não vale nada, é como se fosse vazio de significado: a bobagem de um milagre a mais...

Diante deste quadro, é pertinente crer que institucionalidade envolvida nas políticas agrárias deve sofrer em breve uma grande reforma, ou mesmo sua descontinuidade pura e simples - o sinal do orçamento ridículo já foi dado.

Veremos, então, o que retornará, pois a demanda social por terra e liberdade é concreta e permanecerá por muito tempo ainda bem viva no Brasil rural. Espero que neste cenário futuro as pessoas sejam incorporadas como ativos importantes, no mesmo patamar em que estão a terra e os créditos hoje.


Reforme-se!